sexta-feira, 19 de novembro de 2010

ILUSÃO E EXPERIÊNCIA: A VIAGEM DE CANGAÇO

O olhar de encantamento da plateia de Queimadas

As pessoas foram chegando aos poucos. Olhavam cada detalhe do cenário, da luz e do som. Não era um olhar de surpresa ou de curiosidade. Era um olhar de encantamento. Era um olhar de viagem no tempo. Um tempo que, naquele momento, parecia tão próximo. Seja pela singularidade geográfica, seja pelos aspectos culturais, seja pela identificação com o que seria apresentado.
O local escolhido não poderia ser melhor: o Mercado Municipal. Não havia um tablado, mas um espaço delimitado. Nem tampouco cadeiras. As pessoas tiveram que ficar em pé para assistir.
Quando os primeiros personagens entraram em cena, aquele olhar de encantamento foi se transformando num fenômeno dramático fundamental. Era como “ver-se a si mesmo metamorfoseado diante de si”. Os mais jovens, que já tinham ouvido falar da história, se colocavam no lugar dos mais velhos. As crianças, que não conseguiram assistir, porque a parede humana que se formou as impediu, começaram a brincar de pega-pega, esconde-esconde, estátua, pelos boxes e corredores. Aquela noite de estreia se transformou em dia de feira. E aquilo não atrapalhou, e nem por um momento tirou a atenção dos atores que tomavam por real e verdadeiro o que não passava de ficção, a criação artística de um mundo de referência que se dava como um mundo possível, que seria o nosso.
Afinal, o Rei do Sertão havia passado bem perto dali e ameaçado invadir a cidade. O público conhecia a história, contada de geração a geração. A cenografia também foi responsável por captar a ilusão: o palco frontal, à italiana, enquadrava e punha em perspectiva os acontecimentos. Aquilo ajudava ao espectador ter a ilusão de ver a personagem real à sua frente. Toda a proposta cênica foi feita para que um público como aquele se identificasse. Foi assim naquele Mercado Municipal, em Aporá; foi assim no Salão Paroquial da Igreja Católica no município de Queimadas.
Mesmo distante, apenas contemplando a obra e a ilusão que se formou em todos os componentes do espetáculo, graças ao espaço cênico naturalista, onde tudo foi reconstituído com exatidão em respeito à realidade significada, me sentia na pele Zabelê, furioso por descobrir que o “coiteiro” Antônio de Pissara havia traído o patrão. E não era diferente com Azulão, limpando sua “repetição” e Ezequiel afiando sua “lambedeira”.
Durante todo esse tempo em que o teatro correu em minhas veias, descobri que o único meio de produzir e manter a ilusão - afirmou também o francês Marmontel - é “se parecer com aquilo que se imita”. Para o público, “Cangaço” era um quadro transplantado de sua própria realidade para o palco. Uma realidade, apesar de distante, que agora estava presente.
A proximidade da plateia impulsionou o elenco a mostrar uma imagem da realidade, não a realidade. E isso foi bom porque numa situação como esta é preciso ter dois pensamentos simultâneos: que se veio ver representar uma fábula e que se assiste a um fato real: mas o primeiro pensamento deve sempre prevalecer, pois a ilusão não tem que triunfar às custas da reflexão... “quanto mais viva e forte a ilusão, mais ela age sobre a alma, e, por conseguinte, menos liberdade, reflexão e apego à verdade ela deixa”.
Não é atoa que quando Jararaca é assassinado, o sangue não é visto. Mesmo não estando ali, as pessoas o enxergam. Mas, em nenhum momento se atrevem a estar na pele do cangaceiro traidor. Pelo contrário, cada chute, cada rasteira, cada golpe desferido no cangaceiro José Leite de Santana é dado pela plateia.
A experiência catártica – tão bem explicada e vivida muitas vezes pelo meu amigo Takaro – faz reviver no sujeito tudo o que ele recalcara: expectativas e desejos infantis, as madalenas proustianas e todo o resto. Ator e plateia se transmultam e se entregam. A quarta parede vai para o espaço!

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